Eu queria poder escrever
algo que fosse como uma faca
Escrevo para dar forma ao caos que me habita, escrevo para mudar a forma do caos que eu habito, enquanto o meu habitar dá forma ao caos que me escreve.
Eu queria poder escrever
algo que fosse como uma faca
Amor,
Sei muito bem
de onde seu medo vem:
do asco das profundezas do mundo
das ações egofálicas
de um homem do saco sem fundo
Mas amor, não te inquiete
minhas mãos só te serão prece
e meu diabo apenas
te possui com sua permissão
É que meu fogo de serafim
só se atiça
com o gemido sassaricado do pecado entranhado
na cadência derretida de seu sisisi-sim
E só parte enfim
descendo ladeira
pela curva da geladeira do seu não
Então me dê sua boca
e me permita mergulhar
no sabor de suas palavras
para que elas me penetrem
e despertem o anjo sem asa
que saiu do útero
e caiu na brasa com
o coração na cabeça e o pau na mão
Ogum é só o primeiro dos nossos nomes de guerra
é óbvio que tamos com medo
(não é esse o objetivo das ameaças?)
só que eles esquecem: além do medo,
tem essa raiva na gente. uma raiva
do tempo do "era uma vez" uma
raiva, mergulhada numa sede
de guerra - uma guerra
que sangra não só a gente
que sofre não só a gente
que morre não só a gente
a gente, que de tanto
quase morrer
sofrer
sangrar
quase (eu disse: "quase")
se habituou ao quase
a gente
que já teve que se esconder tanto
(a ponto de tocar o mistério)
que já teve que calar tanto
(a ponto de esculpir o silêncio)
que já teve que morrer tanto
(a ponto de celebrar qualquer, mas qualquer
réstia de vida)
a gente que já teve que fugir tanto, tanto, tanto
que é capaz de fazer de todo canto
(convexo ou pântano)
uma casa,
a gente
faz tempo
já sabe
que não é só eles
que portam armas
de fogo, de falo,
de fado:
pois tem guerra
em que a gente
é quem mata.
e por falar em saudade,
"era uma vez"
Onira
que amava tanto derramar
o sangue de seus adversários
que suas roupas viviam
manchadas
de
sangue
Oxalá
pintou elas de rosa
mas nem isso amansou
ela; e diz o ocidente que rosa
é cor do amor, da flor, de
menina. o rosa.
"era uma vez"
Obá que amava tanto a guerra
mas tanto, e mais que tudo,
que nem sua casa
arrumava, não
penteava os
cabelos
"era uma vez"
um Oxalá bem velho, cansado,
acusado sem verdade,
preso
sem justiça calado
num calabouço
calado, e toda
riqueza do
reino
ele fez secar
os rios. sementes. os ventres.
calado.
era uma vez Omolú
sofreu tanta mágoa
que envenenou o vento
o chão
a água
e ele
não sentiu
pena
nem dos mortos
mas
dançou
em memória deles
e em honra nossa;
porque tem guerra
em que a gente
é quem mata.
era uma vez
Oxossi
que pra matar sua dor
virou rio
e
que pra enganar
a morte
dominou
todo mistério
da mata
porque tem guerra
em que a gente
é quem mata
mas também tem guerra
em que a gente
é quem vive