sexta-feira, 17 de março de 2023

 Eu queria poder escrever

algo que fosse como uma faca

ou uma foice
e me matasse de uma vez só
ceifasse sem dó
cada grito
cada lamento
cada sapato perdido
pelos caminhos tortos
uma escrita que desse paz
a tantos mortos
que me habitam

Uma escrita
com letra
que rompesse a terra
permitisse o galho
a folha, flor 
a fruta
A escrita fora da raíz
da tumba
da escuridão
A palavra que não é só
silêncio

Queria escrever
como quem derrama
uma bebida de porre
aquilo que já não cabe
num gole
uma escrita que me permita
a embriaguez
a tolice
A escrita que me poupasse
o fígado
e o estômago

terça-feira, 14 de março de 2023

Anjo sem asas

 Amor,
Sei muito bem 
de onde seu medo vem: 
do asco das profundezas do mundo 
das ações egofálicas 
de um homem do saco sem fundo
Mas amor, não te inquiete
 minhas mãos só te serão prece
 e meu diabo apenas
 te possui com sua permissão
É que meu fogo de serafim 
só se atiça 
com o gemido sassaricado do pecado entranhado 
na cadência derretida de seu sisisi-sim 
E só parte enfim 
descendo ladeira 
pela curva da geladeira do seu não
Então me dê sua boca
 e me permita mergulhar
 no sabor de suas palavras
 para que elas me penetrem
 e despertem o anjo sem asa
 que saiu do útero
 e caiu na brasa com 
o coração na cabeça e o pau na mão